A arquitetura do plenário do júri

A linguagem revela a essência de todas as coisas e, consequentemente, o modo com que é empregada remete a expressão da realidade de cada sujeito, de cada ambiente, bem como do sujeito para com o ambiente[1].

Tratando-se especialmente do tribunal do júri, recorda-se, pois, de um cenário revelado através da linguagem e que se constroem diversas variáveis que adquirem um significado diante do intérprete da arquitetura do plenário e dos atos que são praticados no local. Por conseguinte, a forma com a qual as partes se posicionam, se portam e se manifestam, influencia na concepção individual sobre o instituto.

O instituto do júri consiste de julgamentos que ocorrem dentro de um jogo cênico, composto por jurados, juiz, acusação e defesa. Esta, porém, no plano da estrutura física (e, consequentemente, linguístico), encontra-se em posição desfavorável em relação à acusação, revelando o autoritarismo da cena e o prejuízo de pré-culpabilidade do acusado, em virtude de uma posição que não cumpre com os princípios norteadores de um processo penal democrático.

A questão arquitetônica, da forma como é estruturada e interpretada no Brasil – o promotor sentado ao lado do juiz presidente e, em muitos plenários, até em um plano mais alto, enquanto a defesa fica isolada no lado oposto – é inadequada pelo viés do sistema acusatório, bem como viola o estado de Direito e os princípios constitucionais da paridade de armas, do princípio do contraditório e da plenitude de defesa. Também impacta no princípio da presunção de inocência, eis que interfere na cognição dos jurados nas tomadas de decisão frente ao significado que esta (in)disposição proporciona.

Ao diferenciar o lugar das partes, impede tanto que o sistema adversarial opere como deveria, como também apresenta um obstáculo para o confronto igualitário que deve ser travado entre o defensor e o membro do Ministério Público perante os julgadores.

No que concerne ao magistrado, a partir de um viés acusatório, este deveria estar equidistante das partes, a fim de demonstrar sua posição de imparcialidade (objetiva) do caso. Esta hierarquia de planos, que discrimina a defesa em benefício da acusação, advém de uma prerrogativa instituída pelo artigo 18, inciso I, alínea “a”, da Lei Complementar 75/1993 e o artigo 41, inciso XI, da Lei 8.625/1993. No entanto, ao menos pela condição de parte na esfera processual penal, tal distinção é absolutamente inconstitucional.

Logo, trata-se de normas que se afastam do modelo acusatório, pois o que deveria ser um duelo leal e justo entre acusador e a defesa do acusado, com igualdade formal e material de poderes, transforma-se em uma disputa desigual entre um “ente” (que confunde, no imaginário e inconsciente social, a função estatal entre acusar e julgar) e o acusado.

O problema vai além, eis que que o tribunal do júri, apesar de ser símbolo da participação popular democrática na administração da justiça, não expressa esse significado através de sua simbologia no real contexto de sua disposição física interna. O lugar de destaque, como mencionado, ocupado pela acusação ao lado direito do magistrado e em plano superior aos demais, manifesta uma insinuante posição de prevalência no processo em detrimento dos demais[2].

Frisa-se, portanto, a importância na alteração desta concessão arquitetônica em que o Ministério Público está inserido, pois desta situação deriva diretamente uma influência subjetiva indevida nos jurados, pois estes distinguem ou entreveem as partes em níveis distintos, associando quem ocupa o nível mais elevado e mais próximo do magistrado como sinônimo de superior autoridade.

Esse aspecto é corroborado pela teoria do agir comunicativo, de Jürgen Habermas, que estabelece que nos procedimentos judiciais a composição do tribunal, a disposição de cada uma das partes processuais, conspira para a solução do caso penal[3].

Há, portanto, um complexo sistema de símbolos que pode ser percebido no tribunal do júri[4] – expresso pelas vestimentas (prisionais) do réu; uso de algemas e correntes; o banco dos réus que ainda resiste em algumas comarcas; e, na arquitetura interna e externa – criadas para representar algo através de seu significado, podendo ser uma forma de comunicação, consciente ou subconsciente “que podem influir de diferentes formas para a consecução dos atos processuais bem como para a decisão final nos processos”.[5]

Esta simbologia do tribunal do júri, destarte, é capaz de gerar um constrangimento ou afinidade com cada uma das respectivas partes processuais. E, por ser um instituto composto por jurados leigos que decidem através da liberdade de convencimento, a justificativa da decisão pode até mesmo se basear na assimilação da proximidade indevida entre acusador e o juiz presidente.

Nesse sentido, ao tratar a defesa e seu representado de maneira distinta “um jurado pode ser influenciado durante todo o julgamento. A impressão criada pode muito bem corroer a presunção de inocência que cada pessoa deve desfrutar”[6]. O estudo apresentado no artigo The Dock on Trial: Courtroom Design and the Presumption of Innocence, esclarece, por exemplo, que os “observadores fazem julgamentos sobre a personalidade de uma pessoa, por exemplo, com base no espaço que ocupam ou em outros estímulos salientes na sala. A qualidade do espaços e móveis também fornecem 'indicações de status'”.

Dessa forma, como os símbolos, enquanto arquitetura e disposição física, estão diretamente ligados aos significados que exprimem em sua vertente consciente e inconsciente, além das consequências de um julgamento baseado em experiências verbais e não verbais dentro do processo penal, é necessário repensar a forma com que essa linguagem simbólica pode refletir no sistema de justiça. Somente assim será possível proteger a defesa técnica da disparidade e iniquidade, além de, consequentemente, evitar violações de direitos e garantias fundamentais.

Com o intuito de resolver essa questão foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.768, atualmente em trâmite[7], questionando a arquitetura cênica da sala de audiência criminal e a desigualdade dessa estrutura, pugnando para que seja sanado o tratamento privilegiado do Ministério Público através da mudança de disposição dos móveis tanto nas salas de audiências, quanto nas sessões de julgamento nos tribunais, conforme destaca-se do memorial apresentado pelo IBCCRIM[8], admitido como amicus curiae.

Com a decisão que se espera ter, precisa-se ir além dos Regimentos Internos dos Tribunais, ou seja, sugere-se positivar tal entendimento na legislação infraconstitucional. A inserção no Código de Processo Penal, conferiria maior segurança jurídica na aplicação, efetividade da norma e dos princípios constitucionais e processuais da lei superior, bem como evitaria que houvesse divergências entre os regimentos internos dos tribunais de cada estado.

A arquitetura é relevante por transmitir um significado, por comunicar uma mensagem para a sociedade e, consequentemente, para que as sessões de julgamentos sejam efetivamente justas.[9]

A busca pela desconstrução de antigos paradigmas e a consequente construção de novas linguagens e novos cenários se faz cada vez mais necessária, ainda mais considerando que o Brasil é o único país das Américas a manter um sistema processual inquisitorial. Ainda precisamos da formação de uma cultura democrática no processo penal[10]. E isso, claro, também perpassa pela disposição física do plenário.

[1] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractus Logico-Philosophicus. Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos; [Introdução de Bertand Russell]. 3. ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008.

[2] KARAM, Maria Lúcia; CASARA, Rubens R. R. Redefinição Cênica das salas de audiências e de sessões dos tribunais. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 5, n. 19, p. 123-129, jul./set. 2005.

[3] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 1.

[4] STRECK, Lênio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 4. ed. rev. e mod. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

[5] ROSA, Karine Azevedo Egypto. A disposição cênica das salas de audiências e tribunais brasileiros: a inconstitucionalidade da prerrogativa de assento do ministério público no processo penal. Rio Grande do Sul. Revista da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 1, n. 18, p. 49-73, ago. 2017. p. 56.

[6] ROSSNER, Meredith; TAIT, David; MCKIMMIE, Blake; SARRE, Rick. The Dock on Trial: Courtroom Design and the Presumption of Innocence. Journal of Law and Society. v. 44, n. 3, p. 317-44, set. 2017. p. 324.

[7] De relatoria da Ministra Carmén Lúcia. Sobre o tema, indicamos o artigo: “NICOLITT, André; CASARA, Rubens. O Supremo Tribunal Federal e a ADI 4768: onde deve sentar o promotor? Consultor Jurídico, 25 jun. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-25/nicolitt-casara-stf-adi-4768-onde-entar-promotor”.

[8] INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM). Memorial ADI n. 4768. 2013. Disponível em: <https://arquivo.ibccrim.org.br/docs/amicus_curiae/ADI_n._4768_Concepcao_cenica_em_salas_de_audiencia_criminal-Memorial.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2022. p. 21.

[9] Importante lembrar o layout não apenas dos filmes americanos, culturalmente difundidos, mas também do próprio Tribunal Penal Internacional. Pelo aspecto histórico, sugere-se a leitura de artigo que investiga a fundamentação utilizada pelos arquitetos ao construir a sala de julgamento de Nuremberg: SOMOS, Mark. “A new architecture of Justice: Dan Kiley ́s design for the Nuremberg Trial ́s courtroom”. Max Planck Institute. MPIL Research Paper Series. No 04. 2018. Disponível em: < https://bit.ly/3sgnaXp >

[10] COUTINHO, Jacinto. N. M. Lei nº 12.403/2011: mais uma tentativa de salvar o sistema inquisitório brasileiro. Boletim IBCCRIM,n. 223, junho. 2011.

  • Alanis Marcela Carvalho Matzembacher

    é pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Curso CEI-Introcrim, graduada em Direito pela FAE Centro Universitário e secretária-geral do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nuperjuri).

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • Denis Sampaio

    é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, Portugal, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, membro honorário do IAB e professor de Processo Penal.

Link para acesso: https://www.conjur.com.br/2022-fev-26/arquitetura-plenario-juri/

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