A defesa no júri e no Tribunal Penal Internacional

No artigo de hoje abordarei algumas comparações entre o sistema de justiça processual penal brasileiro e o do Tribunal Penal Internacional, com foco na atuação defensiva. Após discussões, acompanhamento e participação em julgamentos perante o TPI e na academia, ficou claro que muitos dos problemas que temos no nosso ordenamento também são sentidos na corte internacional.

Inicialmente, no Brasil, resta perceptível — em maior intensidade em crimes midiáticos — uma pré-disposição para a condenação, como uma espécie de pressão pública sobre a responsabilidade do acusado. Normalmente a imprensa noticia as hipóteses acusatórias como a “verdade” sobre o fato.

Nos crimes de competência do TPI, a situação é ainda mais agravada. Há um sentimento generalizado entre praticamente todos que participam do julgamento de que o réu é culpado. Certamente que isso se deve não apenas por conta da gravidade dos crimes envolvidos (genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade), mas também pela pressão da comunidade internacional em relação à situação que está sendo julgada, à cobertura midiática e, até, pelo próprio procedimento e suas diversas fases de admissibilidade (ao chegar na fase do trial, muitas evidências já foram apresentadas, analisadas e tornadas públicas).

A pré-disposição a favor de uma ou da outra parte afeta a imparcialidade do julgamento, pressuposto jurisdicional universalmente aceito e um direito explícito dos acusados nos tribunais internacionais. Mas sua interpretação, natureza e facetas são observadas de maneira diferentes.

Assim, até mesmo para legitimar o procedimento, a defesa precisa atuar efetivamente, exercendo seu papel para garantir um julgamento justo, fazendo os requerimentos necessários em cada uma das fases, analisando as evidências — e produzindo aquelas que são possíveis —–, sustentando a versão do acusado e agindo dentro dos parâmetros normativos do TPI.

Mas, para além do pré-julgamento, algumas outras situações são interessantes de mencionar sobre a parte prática e suas consequências para a defesa:

(1) Resta evidente que os juízes não decidem de maneira uniforme, havendo uma diferença razoável quando a causa é distribuída para uma ou outra “câmara” [1]. No TPI a principal divisão diz respeito ao sistema do qual o juiz provém, se é de um país da common law (com predominância de um modelo processual penal acusatório) ou da civil law (com predominância de um modelo inquisitorial). Isso impacta diretamente na compreensão de seu próprio papel como juiz e condução da sessão (como na “busca da verdade”), na fase de admissibilidade das provas, na possibilidade de preparação das testemunhas para o julgamento, na prevalência da jurisprudência em suas próprias decisões, na participação das vítimas no processo, na interpretação das normas e outros fatores procedimentais.

Perceba-se que, no Brasil, também não é incomum, por motivos diferentes, que os advogados ou promotores torçam para que o processo seja distribuído para um ou outro juiz, câmara, Ministro. Mesmo que tenhamos um sistema em que a lei escrita prepondere, as interpretações são distintas e a segurança jurídica em certos temas está cada vez mais distante.

Por isso, a máxima dos métodos de persuasão “know your audience” (conheça o seu público), deve estar no cerne da atuação das partes, tanto no sistema internacional quanto no Brasil. Entender os precedentes, o comportamento, o entendimento e a base dogmática do julgador, é essencial para a defesa exercer suas incumbências, apresentar os argumentos e, principalmente, preparar-se estrategicamente.

(2) Assim como no modelo nacional, há uma grande disparidade de estrutura entre a acusação e a defesa. O gabinete da promotoria (Office of the Prosecutor, OTP), possui um orçamento elevado e é composto por um grande quadro de profissionais capacitados. Por outro lado, uma equipe padrão de defesa é formada por cerca de cinco pessoas, entre advogados e outros profissionais (como investigadores, case managements, assistentes).

No nível probatório, quase a totalidade das evidências disponíveis para o caso são produzidas por intermédio do OTP, gerando longas discussões sobre disclosure violations. Por outro lado, a investigação defensiva normalmente é tolhida pela ausência de cooperação dos governos atuais dos países dos quais o acusado advém.

Por isso, para além da preparação técnica elevada dos integrantes, a defesa precisa agir estrategicamente, pensando no resultado. Tenho insistido em cursos e no meu último livro [2], sobre a importância de se ter uma teoria global para o caso. De uma forma geral, fazer uma análise das possibilidades de êxito e correlação com as teses e evidências não é suficiente. Também é fundamental, por exemplo, ter uma narrativa própria, não podendo a defesa se contentar apenas em rebater a tese acusatória ou enfatizar que o OTP não atingiu o standard necessário para a condenação.
No júri brasileiro, mesmo que de maneira inconsciente, os jurados esperam uma narrativa consistente por parte da defesa mesmo quando, pelo aspecto jurídico, a promotoria não apresenta provas suficientes para embasar uma condenação. Deve-se desenvolver um planejamento consistente, que se reflita para todas as fases, ações e argumentos no decorrer do processo.

(3) O gabinete do promotor (OTP) atua de maneira sistemática e estratégica, considerando as particularidades de cada caso. Até mesmo anunciar que está “investigando” ou “examinando” determinada situação acarreta consequências perante a comunidade internacional e não raros são os casos em que os países respondem de maneira agressiva contra o OTP e o próprio Tribunal Penal Internacional (basta ver as reações mais recentes de Rússia, Israel e EUA).

Por conta deste agir estratégico, grande parte do trabalho é confidencial, exigindo sigilo não apenas da promotoria e da corte, mas também dos advogados (principalmente nos “casos” que estão nas fases preliminares). A fase de admissibilidade e de julgamento, bem como as suas respectivas decisões são públicas (por mais que a maior parte das oitivas de testemunhas e discussões somente sejam publicizadas, em resumo, ao final). Uma quantidade significativa dos mandados de prisão é sigilosa, assim como diversos procedimentos iniciais.

Dentro das dependências do TPI e, especificamente nas salas de audiências, não são permitidas fotografias ou gravação de vídeos. Entretanto, há diversas câmeras destinadas a filmar integralmente a sessão e todas as discussões que ocorrem (mesmo no decorrer dos intervalos enquanto as partes estão na sala).

No Brasil, o Código de Processo Civil e o Conselho Nacional de Justiça possuem normas específicas que permitem às partes gravar os atos de maneira unilateral e sem autorização. Entretanto, continua-se a discutir sobre as gravações e, principalmente, as divulgações dos atos. Possivelmente, se o Judiciário implementasse um sistema confiável e inviolável de gravação de todas as sessões, esse problema não ocorreria.

(4) Obviamente que os defensores mais capacitados conseguem apresentar as provas e argumentos de maneira mais concatenada e persuasiva. Contudo, há um outro lado mais difícil de ser mensurado. Os magistrados conhecem os advogados. Conhecem aqueles que são corretos, éticos, preparados. Bem como aqueles que não são. E isso significa que é fundamental a percepção da necessidade de construção de uma reputação que viabilize que o caso seja analisado sem ressalvas advindas pela imagem do próprio defensor.

Ademais, no Tribunal Penal Internacional, chama atenção o dever de respeito entre as partes. Exige-se de todos os envolvidos o mais alto standard de ética e integridade, havendo previsão de procedimento disciplinar administrativo para aqueles que violarem o Código de Conduta Profissional.

Para frisar uma regra universal: litigar com destemor e independência é diferente de ser desrespeitoso e, em última análise, cometer condutas ilícitas.

A preparação contínua dos profissionais que atuam no TPI também está expressamente prevista no Código, que demanda aos advogados manter um alto nível de competência e a participar em treinamentos e cursos para se aperfeiçoarem (artigo 7, inc. 3). Esta previsão, que encontra guarida em diversos ordenamentos de países pelo mundo, auxilia para evitar comportamentos inapropriados. Se, aqui no Brasil, fosse exigido um melhor preparo dos operadores do Direito após a graduação, talvez não tivéssemos tantos casos de má atuação e de desrespeito entre os profissionais.

O Estatuto de Roma foi redigido e aprovado por mais de uma centena de países de sistemas jurídicos diferentes e, por isso, sedimenta um modelo heterogêneo que tende a influenciar, em níveis distintos e graduais, os sistemas internos. De toda maneira, as experiências em outros modelos, nacionais ou internacionais, possibilitam o desenvolvimento de uma série de instrumentos para uma atuação com maior eficiência e qualidade. Independentemente do modelo de julgamento adotado, jamais se pode esquecer que a justiça não está no resultado de condenação ou de absolvição, mas sim no procedimento justo adotado até o resultado.

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[1] O Tribunal Penal Internacional é organizado em “chambers” (câmaras, em tradução livre): a pre-trial responsáveis pela fase de admissibilidade (também sobre prisões, autorização para investigação formal, dentre outras), a trial chamber competentes pela fase de julgamento e as appeal chambers, responsáveis pela fase recursal. Também é importante destacar que o juiz presidente decide sobre uma série de questões procedimentais.

[2] “A Defesa no Tribunal do Júri: guia para análise, planejamento e estratégias”, publicado recentemente pela Emais Editora.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

Link para acesso: https://www.conjur.com.br/2024-jul-20/a-defesa-do-juri-e-no-tribunal-penal-internacional/

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