Considerações sobre a transmissão e a gravação do julgamento
Como não poderia ser diferente, a pandemia de Covid-19 afetou diretamente o funcionamento do sistema de Justiça. O distanciamento social e as regras para contenção do coronavírus inviabilizaram sessões de julgamento presenciais por meses, fazendo com que o Poder Judiciário tivesse que se apressar para se adaptar às novas tecnologias [1].
Bem verdade que, mesmo antes da pandemia, os tribunais já possuíam ferramentas para ampliar a publicidade dos atos processuais, com a utilização de canais próprios na rede de televisão e no YouTube, por exemplo. Não eram incomuns transmissões de julgamentos de processos do Supremo Tribunal Federal (STF) ou do tribunal do júri.
Hoje em dia, diversos tribunais possibilitam que as sessões de júri sejam acompanhadas pela rede mundial de computadores. Apesar de algumas questões que devem ser repensadas, como a possibilidade de permitir "comentários" públicos no chat, o que não apenas permite ataques contra a honra daqueles que estão participando do julgamento (advogados, promotores e juízes), como também viabiliza a propagação de toda sorte de fake news sobre o próprio caso e outros que serão julgados.
Fato é que a gravação e a transmissão são mecanismos que facilitam a mais ampla publicidade do caso e, como se sabe, o princípio processual da publicidade constitui um pilar substancial do sistema acusatório e da própria democracia. Trata-se, em linhas gerais, de uma garantia individual de proteção contra arbitrariedades, e de um instrumento de controle social sobre a atividade jurisdicional.
A ponderação deve ser realizada no sentido de evitar que a exposição midiática viole outros princípios fundamentais do cidadão — fenômeno cada vez mais frequente e que já exploramos sob diversas perspectivas nesta coluna [2]. Assim, seria interessante que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentasse, após ampla discussão com todos os interessados, a transmissão de julgamentos, até mesmo como forma de expandir o caráter pedagógico e democrático da instituição do júri, eis que seu adequado funcionamento auxilia na propagação do caráter cogente das normas e pode promover o entendimento público sobre os direitos e garantias constitucionais dos cidadãos.
De qualquer maneira, há um aspecto que já foi aprovado pelos legisladores e objeto de análise pelo CNJ: a gravação da sessão pela parte. Por mais que o direito seja previsto em lei, ainda assim, algumas resistências são reportadas por todo Brasil.
A partir do entendimento da publicidade plena do caso concreto, o ideal seria que o próprio Judiciário gravasse o julgamento na integralidade e disponibilizasse ao final para as partes. No entanto, as próprias partes possuem o direito de fazer a sua própria gravação, utilizando o conteúdo endoprocessualmente, "sempre de maneira a respeitar as normativas relacionadas aos direitos à imagem e privacidade dos jurados" [3].
O artigo 367, § 5º e § 6º, do Código de Processo Civil, assegura que "a audiência poderá ser integralmente gravada em imagem e em áudio, em meio digital ou analógico, desde que assegure o rápido acesso das partes e dos órgãos julgadores, observada a legislação específica", complementando que poderá "ser realizada diretamente por qualquer das partes, independentemente de autorização judicial".
Na ausência de previsão específica no Código de Processo Penal, autoriza-se a utilização do CPC, como previsto no artigo 3º do CPP e já reconhecido pelo STF, segundo o qual "[a] analogia constitui meio de integração do direito, de modo que a aplicação, no processo penal, de regras contidas no Código de Processo Civil pressupõe a existência de lacuna normativa" (STF, Rcl nº 23.045-ED-AgR/SP, Tribunal Pleno, rel. min. Edson Fachin, DJe de 11/3/2020).
Também, o CNJ, em 14 de abril de 2021, publicou a Recomendação nº 94, determinando "aos tribunais brasileiros a adoção de medidas incentivadoras da prática de gravação de atos processuais, com vistas à melhoria da prestação jurisdicional". No preâmbulo do documento, o CNJ assenta:
"CONSIDERANDO que o art. 367, da Lei nº 13.105/2015, regulamentou, de forma específica, a possibilidade de as audiências serem integralmente gravadas em imagem e em áudio, em meio digital ou analógico, desde que assegure o rápido acesso das partes e dos órgãos julgadores e, ainda, que a gravação também poderá ser realizada diretamente por qualquer das partes, independentemente de autorização judicial."
Assim, resta evidente que tanto a acusação quanto a defesa poderão realizar a gravação de modo unilateral, desde que informado anteriormente e viabilizado o acesso ao final à todos. Neste diapasão, também há recente precedente importante no TJ-PR, na lavra do decano do tribunal, desembargador Telmo Cherem, que concedeu liminar nos autos de Mandado de Segurança nº 63832-20.2022.8.16.0000 (em 26/10/2022), permitindo que os advogados gravassem o julgamento, apesar de haver transmissão ao vivo pelo canal do YouTube do próprio Tribunal de Justiça, também como forma de "assegurar a ampla defesa do Réu".
Destacamos a decisão do ministro do STF Dias Toffoli, que, em habeas corpus no qual se discutia se haveria o crime de desobediência pelo fato de haver gravação unilateral apesar de proibição expressa do juiz que presidia a sessão, concedeu de ofício a ordem para o trancamento da ação penal:
"Habeas corpus. Processual penal. Crime de desobediência a ordem ou instrução da Justiça Eleitoral. Artigo 347 do Código Eleitoral. Alegada falta de justa causa por atipicidade do fato. Pedido de trancamento da ação penal. Excepcionalidade da medida. Precedentes. Tema não analisado pela Corte Eleitoral. Inadmissível supressão de instância caracterizada. Inexistência de impedimento para que o Supremo Tribunal Federal analise a questão ex officio. Precedentes. Flagrante ilegalidade evidenciada de plano. Gravação audiovisual dos depoimentos prestados em audiências de instrução e julgamento. Admissibilidade conferida às partes, independentemente de autorização judicial, pelo art. 367, §§ 5º e 6º, do CPC. Existência de lacuna normativa do Código Eleitoral. Aplicação analógica do regramento contido no Codex Processual Civil. Possibilidade. Precedentes. Habeas corpus concedido de ofício para se determinar o trancamento da ação penal nº 0000007- 25.2018.6.19.0098, por falta de justa causa. (…) 4. O paciente foi denunciado pela prática, em tese, do crime tipificado no art. 347 do Código Eleitoral (desobediência a ordem ou instrução da Justiça Eleitoral) em virtude de ter se recusado a obedecer a ordem mediante a qual o juízo eleitoral proibiu a gravação audiovisual dos depoimentos prestados em audiências de instrução e julgamento, realizadas nos dias 20 de fevereiro e 3 de abril de 2017. 5. Verifica-se, no caso, omissão do Código Eleitoral a respeito da possibilidade de gravação em imagem e/ou áudio das audiências de instrução e julgamento. O novo Código de Processo Civil, em seu art. 367, §§ 5º e 6º, confere às partes, independentemente de autorização judicial, o direito de gravar as audiências integralmente em imagem e em áudio, por meio digital ou analógico (…) 10. Ordem de habeas corpus concedida de ofício para se determinar o trancamento da ação penal nº 0000007- 25.2018.6.19.0098, por falta de justa causa." (STF. HC 193.515, relator: Dias Toffoli, 1ª Turma, j. em 12/5/2021).
Veja-se que a gravação audiovisual pelas partes poderá ser realizada até mesmo em casos de segredo de justiça [4], uma vez que o arquivo tem como intuito registrar todos os acontecimentos do julgamento, subsidiando eventuais peças recursais.
De toda sorte, pelo aspecto prático, mesmo sem haver necessidade de autorização judicial, a parte precisa informar que realizará a gravação e disponibilizar para a outra parte e para o juízo ao final do julgamento — afastando espaço, portanto, para gravações sub-reptícias. Claro que, por conta de a gravação unilateral não ser oficial, todos os gastos, estrutura e equipamentos deverão ser providenciados pelo interessado.
Lembramos que, por mais que a ata de julgamento seja imprescindível para registrar todas as ocorrências da sessão (artigo 495 do CPP) — sempre lembrando que as partes devem se esmerar para consignar tudo aquilo que entender relevante —, a gravação do julgamento em sua integralidade é o mais acertado. Não apenas porque o processo é público, mas principalmente por conta da complexidade das discussões em sede de apelação — especialmente quando a ata dá margem para interpretações díspares.
Pensemos em casos nos quais o debate central é se uma das partes utilizou a decisão de pronúncia como argumento de autoridade, ou sobre o comportamento inadequado de uma das partes enquanto o orador discursava, ou ainda sobre se a acusação utilizou como argumento a opção do silêncio pelo acusado em seu interrogatório. São situações em que a análise em áudio e vídeo da sessão certamente mostrará com maior riqueza de detalhes se a nulidade, de fato, ocorreu. Ou seja, aumentam-se os elementos à disposição do julgador ad quem, que proferirá decisões com maior qualidade e segurança, o que interessa para todos os envolvidos. Por isso também a insistência de que o próprio juízo realize a gravação integral de todas as sessões de julgamento.
Em suma, ainda que a transmissão ao vivo das sessões precise de uma maior reflexão sobre a hiperexposição e suas consequências [5], a gravação unilateral, com finalidade exclusivamente endoprocessual, não pode ser proibida [6]. Obviamente que as partes responsáveis pela gravação devem respeitar as normativas deontológicas (em especial para não utilização das imagens com a finalidade de autopromoção). Entretanto, a captura em áudio e vídeo da sessão na integralidade constitui um instrumento essencial para o livre exercício profissional, além de assegurar os princípios do devido processo legal, da publicidade, do contraditório e da plenitude de defesa.
[1] Por mais que não seja objeto do artigo de hoje, o modelo de "júri virtual" apresentou grande risco de flexibilizar diversos princípios e garantias constitucionais (alguns aspectos, como a participação de testemunhas virtualmente, ainda é objeto de críticas). Sobre o assunto, sugerimos a leitura do artigo "Os Riscos de um juízo por jurados virtual" publicado na edição 24 da Revista de Sistemas Judiciales, editada pelo Centro de Estudios de Justicia de las Américas (Ceja) e pelo Instituto de Estudios Comparados en Ciencias Penales y Sociales (Inecip).
[2] "Ainda sobre o impacto da mídia no júri"; "Julgamentos midiáticos pelo júri: a Double Jurisdiction"; "O Tribunal do Júri e os casos midiáticos: Sheppard v. Maxwell": parte 1, parte 2, parte 3.
[3] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, 2ª ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 495. Aliás, por óbvio que as partes, ao realizarem registros audiovisuais, devem obediência ao princípio da legalidade e da boa-fé, sob pena de responsabilização por eventuais ilícitos e danos causados. Sobre a extensão da exigência de boa-fé ao processo penal, vide DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Pareceres, V. 2. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 25.
[4] Apesar desta possibilidade, cautelas adicionais precisam ser realizadas quando se tratar de testemunhas sigilosas e/ou protegidas.
[5] Sobre isso também vale a leitura do artigo "O júri para além do que vemos nas redes sociais", publicado aqui na coluna em 15 de maio de 2021.
[6] Com exceção do momento da votação pelos jurados (art. 485, do CPP).
é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de Mestrado em Psicologia Forense da UTP.
é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.
Daniel Ribeiro Surdi de Avelar
é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).
é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.
Link para acesso: https://www.conjur.com.br/2023-mai-13/tribunal-juri-consideracoes-transmissao-gravacao-julgamento/