Ainda sobre o impacto da mídia no júri

Em 17 de setembro do ano passado discutimos nesta coluna sobre os "julgamentos midiáticos pelo júri". Depois, em uma série de artigos, abordamos o caso Sheppard v. Maxwell (parte 1, parte 2 e parte 3). Em matéria publicada em 11 de dezembro de 2022, aqui nesta Conjur, também foram debatidos aspectos relacionados à influência das redes sociais no tribunal do júri. Esta remissão demonstra que se trata de um assunto cada vez mais discutido pela comunidade jurídica e que merece especial atenção do judiciário, eis que não há Estado de Direito sem um processo penal justo e imparcial.

Percebe-se posicionamentos diversos entre aqueles que entendem que a liberdade de expressão da imprensa não abarca qualquer restrição, e os que vislumbram que a liberdade absoluta de imprensa não pode incorrer na violação do devido processo legal.

Tanto a liberdade de imprensa (e a liberdade de expressão de maneira individual), bem como os direitos de proteção no processo penal, são valores de ordem constitucional. No entanto, os conflitos ficam cada vez mais evidenciados, não apenas no Brasil, como em diversos países democráticos.

De uma forma geral os países tendem a escolher que a garantia de um julgamento justo merece uma maior proteção do que o direito da publicidade do caso. Isso porque este último somente será restringido enquanto o processo estiver em tramitação, justamente para que não influencie o resultado deste. Constitui uma limitação temporária que será dissolvida após a decisão do caso, até mesmo para que as notícias sejam verídicas, isto é, consubstanciadas em fatos comprovados a partir do filtro normativo.

Com o avanço e a popularização da tecnologia, em que as redes sociais e de internet são ferramentas universais de expressão, os problemas já enfrentados na época da mídia impressa e do oligopólio das redes de televisão se acentuam e ganham outras ramificações.

Na esfera do júri, é evidente que a grande maioria dos casos não são objeto de interesse social. Centenas de julgamentos são realizados diariamente, mas apenas alguns geram grande quantidade de conteúdo. É difícil identificar quais são os fatores que produzem essa curiosidade, contudo, normalmente, é uma combinação entre a gravidade, circunstâncias e localização do crime, bem como as características dos envolvidos (autor e vítima). A depender destes elementos, cria-se uma verdadeira novela (ou filme de terror) em que cada informação divulgada (mesmo que criada) será detalhadamente exposta e manipulada, adentrando implacavelmente na esfera de conhecimento de potenciais jurados.

Veja-se, por exemplo, dois casos em que ainda estão em sede recursal e que inevitavelmente foram diretamente impactados pela imprensa. O caso da ex-deputada Flordelis e o da Boate Kiss [1].

A primeira sofreu uma campanha massiva de desconstrução e ressignificação da própria história de vida. Os fatos de sua biografia, comprovados e acompanhados durante algumas décadas foram desprezados. Desde o homicídio de seu marido, fatos privados foram publicizados e tantos outros fatos inverídicos foram produzidos no intuito de destruí-la como mulher, como esposa, mãe e religiosa. Neste caso, ficou evidenciado que a melhor forma para se conseguir uma condenação é retirar a condição de "ser humano" do acusado para, consequentemente, não se estar julgando um sujeito de direitos.

No segundo caso, a dimensão da tragédia ocorrida em Santa Maria, com a morte de 242 pessoas e centenas de feridos, afetou toda a nação. A exigência de investigação e responsabilização não partiu apenas dos familiares, mas da sociedade que se viu empaticamente ligada àquela dor. No entanto, a tentativa de resumir todos os possíveis responsáveis em apenas quatro pessoas e ainda por uma acusação por dolo eventual, esbarra na dogmática do próprio direito penal. E claro que isso gera uma revolta generalizada que se transformou em um prato cheio para a espetacularização midiática.

Temos em comum entre esses dois casos o lançamento de dois documentários em redes de streaming para cada um dos processos [2]. Aliás, o documentário da Globoplay sobre Flordelis foi lançado antes do início do julgamento popular. Em ambos os casos também não se aguardou sequer o trânsito em julgado, consolidando "a realidade" não apenas pelas provas do processo, mas por tantos outros fatores.

Mas aqui, é fundamental pontuar que o show da mídia e das redes sociais se baseia quase que integralmente na hipótese acusatória. É como se, desde o início, a palavra das autoridades policiais, dos promotores de justiça quando apresentam a denúncia ou mesmo de qualquer detrator do sujeito suspeito de cometer o delito, fossem a verdade plena. Como qualquer valor absoluto, essas suposições passam a contar com uma presunção de veracidade.

E isso fulmina diretamente o exercício da defesa, estabelecendo uma inversão típica da inquisição, em que a defesa passa a ter o ônus de descontruir a acusação que já está alicerçada na consciência (ou inconsciência [3]) popular.  Assim, o encargo do MP de comprovar a responsabilidade para além da dúvida razoável já foi atingido antes mesmo do julgamento. Para a defesa não basta que seja respeitado o devido processo legal com as suas garantias, porquanto passa a ter incumbência de comprovar a inocência além da dúvida razoável de culpabilidade.

Por mais que saibamos que os juízes profissionais também são influenciados pela opinião pública e pelas notícias midiáticas, no tribunal do júri o impacto pode ser até maior, eis que os jurados julgam sem fundamentação, o que, em tese, aumentar a possibilidade de que pré-disposições atuem de maneira mais severa na tomada de decisão.

Então, precisamos avançar e refletir sobre o assunto com vistas a desenvolver instrumentos efetivos para mitigar o impacto da mídia e das redes sociais no júri.

Pelo viés endoprocessual. Em primeiro lugar o sistema de justiça deve atuar dentro dos parâmetros democráticos, afastando do processo os elementos e provas que não são relacionados ao crime em si. Em segundo, o juiz deveria instruir os jurados a decidirem exclusivamente levando em conta as provas apresentadas na sessão (deixando explícito que a ponderação deve se dar com base naquilo que foi produzido perante eles). Em terceiro, o juiz presidente precisa informar o Conselho de Sentença sobre os direitos e garantias constitucionais, como a presunção de inocência, o ônus da prova e o corolário do in dubio pro reo, verdadeiros vetores de orientação da tomada de decisão em um Estado de Direito. Em quarto, seria interessante que os jurados deliberassem para alcançar uma decisão consensual e unânime. Isso faria com que os julgadores fossem forçados a avaliar e ponderar as provas apresentadas [4]. Ademais, a condenação por uma margem mínima é uma revelação explícita de dúvida no Conselho de Sentença e uma comprovação de que a acusação não atingiu o standard mínimo para condenação.

Pelo viés extraprocessual. Precisa-se elaborar ferramentas que impeçam a divulgação de informações unilaterais e espetaculosas sobre casos que ainda não foram julgados [5]. Como todos percebem, alguns meios tradicionais ainda executam o protocolo de ouvir os dois lados, entretanto a versão defensiva é apresentada ao final, de maneira tímida, quase que envergonhada, em poucos segundos ou com a exibição de uma pequena nota. Obviamente que isso é insuficiente. Assim como é absolutamente medíocre a previsão do artigo 38 da Lei de Abuso de Autoridade, em que se tipifica a conduta dos investigadores de antecipar "por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação". A antecipação de atribuição de culpa não poderia ocorrer por nenhuma autoridade (nem de investigação, nem — muito menos — de acusação) antes da finalização do processo penal. Isto é, permite-se que, após formalizada a acusação, o aparato persecutório utilize a mídia para ter uma vantagem competitiva que dificilmente poderá ser revertida.  

Salienta-se que a não exposição constitui um direito fundamental também pelo viés da imagem do cidadão suspeito ou acusado pelo crime, pois mesmo se a acusação for descaracterizada no decorrer do processo penal, a reputação e, até a própria vida do cidadão, resta aniquilada (e são inúmeros os exemplos neste sentido).

Em suma, precisamos de julgamentos verdadeiramente imparciais, baseados em provas válidas, caso contrário jamais teremos veredictos legítimos em casos midiáticos. Os princípios da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão devem ser interpretados com razoabilidade quando em confronto com o devido processo legal, a presunção de inocência e a plenitude de defesa.

Em épocas de fake news que conseguem abalar a própria estrutura democrática, resta cada vez mais fácil que o controle do resultado de um julgamento caiba à mídia e às redes sociais. Sendo assim, precisamos refletir quais dados podem ser divulgados antes que o caso seja julgado e como proceder para afastar informações que são capazes de influenciar o futuro Conselho de Sentença. Não há como legitimar uma decisão que tenha sido tomada antes do próprio julgamento.

 

[1] Considerando que tenho envolvimento profissional com ambos os casos, explorarei neste texto apenas o aspecto relacionado à exposição midiática (foco do artigo).

[2] Pela Globoplay: "Flordelis: questiona ou adora" (em que o sétimo e último capítulo aborda justamente o julgamento pelo júri) e "Boate Kiss: A tragédia de Santa Maria"; pela HBO "Flordelis: em nome da mãe"; pela Netflix "Todo dia a Mesma Noite".

[3] Sobre os fenômenos psíquicos que passam a atuar com a divulgação de informações (falsas ou verdadeiras) sobre o caso, recomendo o livro "O Cérebro que Julga" de Rosivaldo Toscano Jr, da Emais Editora.

[4] Ver o artigo "Tribunal do Júri: deliberação entre os jurados aumenta a qualidade das decisões", de 1 de abril de 2021.

[5] A Inglaterra, por exemplo, possui normas que objetivam evitar que o futuro júri seja influenciado, impedindo que determinados detalhes ou casos sejam explorados pela mídia antes do julgamento terminar.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de Mestrado em Psicologia Forense da UTP.

Link para acesso: https://www.conjur.com.br/2023-fev-11/tribunal-juri-ainda-impacto-midia-juri/

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