O silêncio do acusado e o efeito das perguntas da acusação em plenário

Os debates constituem o momento mais esperado de um julgamento pelo Tribunal do Júri. Trata-se da fase em que as partes apresentam argumentos estruturados na oratória e persuasão ao Conselho de Sentença. No entanto, o grande equívoco daqueles que assistem a um plenário do júri consiste em acreditar que o ponto exclusivo na influência dos tomadores da decisão final está exclusivamente nas sustentações. A situação resulta mais sensível quando as próprias partes tomam essa afirmativa como real.

O julgamento de um caso (no júri ou no juízo monocrático) é cercado de múltiplos fatores que influenciam para a formação da decisão final. Desde a análise sobre a ausência ou presença de defeitos processuais — daí o necessário estudo das nulidades e a forma de controle prático, em especial, pela defesa técnica —, a análise de toda a dinâmica probatória, até as argumentações como elemento essencial para a decisão penal, na incorporação do efetivo contraditório. Por isso, deve-se pensar que a atuação das partes segue como ferramenta necessária na coprodução — do início ao fim — da solução do caso.

Trazemos essa reflexão, justamente por considerar a instrução probatória e a realização do interrogatório como os fundamentais momentos de obtenção do conhecimento sobre os fatos. Logo, é possível indicar ser o principal espaço de verificação/refutação fática e formação de convencimento dos julgadores. E foi justamente por isso que já enfrentamos nessa coluna alguns debates sobre as concepções probatórias e suas especificidades no Tribunal do Júri (ver aqui, aqui e aqui)

Contudo, um grave problema que devemos identificar no julgamento perante o júri são os limites dos atos em plenário, em especial, da acusação. Não é apenas nos debates que essa delicada questão deve ser evidenciada em virtude da aplicação do artigo 476, CPP (tema que já enfrentamos nesta coluna, veja artigo), mas também no momento de obtenção de informações na instrução.

Existem algumas normas legais que regem esses limites. Seguindo como exemplo, não exaurientes, o artigo 478 do CPP com preceito necessário à ausência de influências negativas ao Conselho de Sentença, quando aponta pela impossibilidade de fazer referências à decisão de pronúncia (ou às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação), à determinação do uso de algemas, ao silêncio do acusado. O artigo 479 do CPP também, eis que impõe o princípio da não surpresa, fortalecendo o contraditório em plenário do júri.

Salientamos, ademais, um ponto de destaque quanto ao limite legal conjugado à sua força constitucional e sua aplicação prática em plenário: o exercício da autodefesa do acusado e, na mesma linha, o direito ao silêncio. 

O artigo 5º, LXIII da Constituição da República garante aos acusados o direito ao silêncio. Esse dispositivo se torna essencial para a garantia da não autoincriminação e para estabelecer as estratégias defensiva, asseguradas também em grau constitucional. Por isso, o parágrafo único do artigo 186, CPP aponta que o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. Essa parte final indica que foi adotado o sistema do “silêncio protegido”, em detrimento do sistema de “silêncio tolerado” [1], não podendo as autoridades encarregadas da persecução penal valerem-se, pois, de subterfúgios, diretos e indiretos, capazes de macular o preceito textualizado na carta constitucional.

Nesse escopo, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já textualizou que “o interrogatório é, em verdade, o momento ótimo do acusado, o seu ‘dia na Corte’ (day in Court), a única oportunidade, ao longo de todo o processo, em que ele tem voz ativa e livre para, se assim o desejar, dar sua versão dos fatos, rebater os argumentos, as narrativas e as provas do órgão acusador, apresentar álibis, indicar provas, justificar atitudes, dizer, enfim, tudo o que lhe pareça importante para a sua defesa, além, é claro, de responder às perguntas que quiser responder, de modo livre, desimpedido e voluntário”. (REsp 1.825.622/SP, 6ª Turma, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 28/10/2020). Essa afirmativa caracteriza, por completo, o interrogatório como exercício de estratégias defensivas, para além de um meio de prova. É, na sua essência, um espaço destinado à efetiva defesa realizada pelo próprio acusado conjugado à sua defesa técnica.

Muito embora o texto constitucional, bem como o infraconstitucional (artigo 186 e seu parágrafo), não estabeleça o grau de abrangência do exercício ao silêncio, tampouco aborda os seus limites. Deixa claro, no entanto, que esse exercício não poderá resultar em prejuízo prático ao próprio exercício de defesa, até por que, “o  interrogatório, como meio de defesa, implica ao imputado a possibilidade de responder a todas, nenhuma ou a apenas algumas perguntas direcionadas ao acusado, que tem direito de poder escolher a estratégia que melhor lhe aprouver à sua defesa.” (HC nº 703.978/SC, relator ministro Olindo Menezes (des. convocado do TRF 1ª Região), 6ª Turma, j. em 5/4/2022, DJe de 7/4/2022)

Por essa linha de análise, não há qualquer vedação à realização do silêncio parcial ou seletivo. Não há imposição normativa em que ou o acusado deva exercer o silêncio “em bloco” ou não poderá sequer exercer.

Em um caso concreto, foi assegurado ao acusado, no início de seu interrogatório, o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si. Em seguida, após o réu manifestar expressamente o desejo de responder somente as perguntas da defesa, o julgador indeferiu o referido pleito e encerrou o interrogatório. A defesa técnica se insurgiu em audiência evitando, portanto, a preclusão do defeito do ato. Consequentemente, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em nova oportunidade, enfrentou a impugnação para reconhecer o cerceamento da defesa e anular o interrogatório, determinando que outro fosse realizado, destacando que:

“De feito, não há nenhuma previsão legal que determine o encerramento do interrogatório sem possibilidade de indagações pela defesa após a declaração da opção do exercício do direito ao silêncio seletivo pelo acusado. Na verdade, o artigo 186 do CPP prevê que, depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas” (6ª Turma, STJ, RHC n. 187.129/ES. rel. min. Sebastião Reis Júnior, j. em 22/9/2023).

Conclui-se que não há qualquer vedação ao silêncio parcial ou seletivo do acusado, podendo ocorrer, inclusive, somente quanto às perguntas da acusação. Dessa afirmativa, podemos extrair outros efeitos de extrema relevância na dinâmica do plenário do Júri.

Garantido o efetivo direito ao silêncio — na sua forma total ou parcial —, a ressalva inicial deste artigo deve ser retomada. O momento da instrução probatória denota espaço específico para a influência direta na formação do convencimento dos jurados, bem como o exercício da autodefesa.

No procedimento do júri, o respeito ao direito ao silêncio adquire importância ainda maior, considerando que os jurados julgam com liberdade de convencimento e não possuem o dever de fundamentar suas decisões, tanto que o Código de Processo Penal veda, expressamente, que durante os debates as partes façam referência ao eventual silêncio como argumento de autoridade, sob pena de nulidade (artigo 478, inciso II, do CPP).

Situação peculiar ocorre quando o acusado afirma, de forma antecipada, que exercerá o silêncio seletivo em relação à acusação e essa se manifesta pela realização de perguntas, ainda que tenha ciência que não ocorrerão consequentes respostas. Aliás, não é incomum o prosseguimento do ato com perguntas consignadas pela acusação, apontando ser “seu direito à realização das perguntas”. Porém, torna evidente que, uma vez ocorrida a manifestação expressa do acusado que fará uso do direito constitucional ao silêncio parcial, a acusação não poderá fazer qualquer pergunta. Tal conduta, em tese, pode figurar inclusive crime de abuso de autoridade (artigo 13, II e III, ou 15, parágrafo único, I, da Lei n° 13.869/2019).

          A realização de “interrogatório abusivo ou inútil”, termo cunhado por Paulo Queiroz [2] para se referir a essa prática de se registrar inúmeras perguntas do órgão acusatório ou da autoridade interrogante, mesmo depois do réu já ter informado da sua escolha pelo silêncio, resvala em dois objetivos específicos:

1º) Gerar constrangimento ao acusado em plenário, que passa então de sujeito de direitos a um mero objeto da persecução penal.

2º) Influenciar diretamente na decisão dos jurados quanto a não resposta do acusado, já anteriormente declarada.

Deve ser ressaltado que, as perguntas realizadas após o acusado se manifestar que não irá responder, não buscam esclarecer fatos ao Conselho de Sentença. São indagações que não possuem a função de comprovar ou repelir condutas, caracterizando-se como meramente retóricas, mas que geram reais e relevantes prejuízos ao exercício de defesa do acusado, contrariando o que determina a parte final do parágrafo único do artigo 186, CPP.

Situação similar foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Reclamação 39.449, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no qual foi declarada inconstitucional a famigerada prática das “conduções coercitivas”. Neste caso, o voto condutor expressamente assentou que o acusado sequer necessita comparecer ao ato de interrogatório:

“Ora, se o investigado não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação. É autêntica lawfare da acusação: registram-se as perguntas apenas tentar provocar prejuízo ao interrogado, por exercer seu direito ao silêncio” (STF, Rcl 39.449, rel. min. Gilmar Mendes, DJ 2/3/2020).

Ainda que seja vedada a exposição do exercício do silêncio do acusado nos debates, a realização de perguntas retóricas e sem consequentes respostas, surte efeito direto e influencia no convencimento dos jurados.

De certo que a originalidade cognitiva dos jurados — característica ínsita do princípio da oralidade — estabelece maior atenção do Conselho de Sentença para todas as informações produzidas em plenário. A ausência ou presença do acusado naquela ambiência resulta neste efeito [3]. Da mesma forma a atuação das partes quando possuem o efeito retórico de influência na formação da decisão dos jurados. Nesta hipótese, as perguntas dirigidas ao acusado não sofrerão abalo com as respostas, pois essas não existirão. Por isso, além de violação ao exercício do silêncio, essa prática rompe com a plenitude de defesa, na medida em que ou o acusado responde as perguntas (constrangimento identificado em plenário) ou ocorre clara ruptura da sua estratégia defensiva.

Por todas essas questões, realizar perguntas retóricas ao acusado sem que alcance o seu principal fim, a obtenção de conhecimento fático, além de poder configurar abuso de autoridade (artigo 13, II e III, ou 15, parágrafo único, I, da Lei n° 13.869/2019),  traduz em um risco de evidenciar defeitos processuais no principal momento do julgamento. Gera, ainda, a inobservância de proteção aos direitos e garantias fundamentais (silêncio, autodefesa e justo processo).  Todos esses vieses de ruptura com normas de proteção e racionalidade probatória, resvala na influência ao Conselho de Sentença e, portanto, produz efeito negativo à formação da (justa) decisão penal.

[1] Sobre os modelos de silêncio, vide DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, reimp. (1974). Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 448-449; SILVA, Sandra Oliveira. O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo: considerações em torno do princípio nemo tenetur se ipsum accusare. Coimbra:  Almedina, 2018, p. 392.

[2] QUEIROZ, Paulo. Direito ao silêncio e interrogatório abusivo. Disponível em: https://www.pauloqueiroz.net/direito-ao-silencio-e-interrogatorio-abusivo/, acesso em 22/11/2023

[3] Daí extrai-se um dos pontos da vedação de utilização de algemas em plenário (art. 474, §3º do CPP), bem como a utilização de roupas civis aos acusados presos cautelarmente.

  • Denis Sampaio

    é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é desembargador substituto do TJ-PR, magistrado auxiliar da presidência do CNJ, mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) e professor de Processo Penal (UTP, Emap, Ejud-PR).

Link para acesso: https://www.conjur.com.br/2023-dez-02/prisao-automatica-no-juri-questao-tecnica-juridica-ou-populismo-penal/

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