Prisão automática no júri: questão técnica-jurídica ou populismo penal?
O debate acerca da (in)constitucionalidade da prisão automática do réu condenado pelo Tribunal do Júri pode estar infiltrado pelo populismo penal, causando prejuízos à democracia e à efetivação de direitos e garantias fundamentais.
O princípio constitucional da presunção de inocência encontra assento no artigo 5º, inciso LVII da CF, com a seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em jugado da sentença penal condenatória”. O Brasil é ainda signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDP), que consagram, outrossim, a presunção de inocência como viga mestra do sistema processual penal em um Estado democrático de Direito.
Infelizmente esse mandado constitucional foi desconsiderado pelo Congresso Nacional que, em nítido backlash legislativo, por ocasião do “pacote anticrime”, determinou a prisão automática do réu condenado pelo Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão (CPP, artigo 492, inciso I, “e”).
A postura dos parlamentares não é surpreendente, porquanto eles são eleitos por votação majoritária. Em uma sociedade na qual “bandido bom é bandido morto”, a prisão automática dos “homicidas” naturalmente agrada o eleitorado. A redação do artigo 492, inciso I, “e” do CPP é um típico exemplo do fenômeno conhecido por “populismo penal” (penal populism).
A criminologia debruça-se sobre o populismo penal, cujo objeto de estudo gravita em torno das relações entre o populismo e a ampliação da normatividade jurídica-penal, há alguns anos. A base pioneira, para tanto, foi obra do britânico Anthony Bottoms, que cunhou o termo “punitividade populista” (populist punitiveness). Tal nomenclatura compreende a atividade de agentes políticos que querem angariar a simpatia dos eleitores mediante mudanças legislativas fulcradas na ideia de que o recrudescimento do trato dos indivíduos acusados de crime diminui, imediata e automaticamente, a criminalidade (função da prevenção social negativa), bem como, de que a aplicação de uma pena rígida é suficiente para garantir a manutenção da ordem pública (função da prevenção social positiva) [1]. Sobre a temática, valemo-nos das palavras de Antonella Galindo:
“Seria uma espécie de estratagema político oportunista voltado à manipulação da opinião pública, sendo uma manifestação concreta da retórica manejada por políticos profissionais que procuram realizar um conjunto de reformas penais com o intuito de obter dividendos eleitorais em vez de reduzir efetivamente os conflitos sociais que resultam no comento de crimes” [2].
O populismo penal encontra terreno fértil em sociedades assoladas pela violência, como é o caso do Brasil. A “cultura do medo” vivenciada no mundo contemporâneo embute na sociedade a importância de uma atividade repressiva estatal e propicia o avultamento de um Estado Policial, cujo raio de ação dirige-se para as consequências do crime e não para o combate das causas que levam à delinquência. Cumpre destacar, nesse cenário, o relevante papel exercido pela mídia, que, ao fomentar o “pânico moral”, consegue a façanha de que as políticas repressivas desfrutem de aceitação popular e ainda isenta o governo de cobrança por programas sociais. Forma-se, pois, uma (simbólica) crença popular de que o Direito Penal cumpre sua função de manter a harmônica convivência social.
Opinião pública e populismo penal se retroalimentam em um ciclo vicioso. Nessa esteira, o político (populista) para bem desempenhar seu papel deve, na qualidade de legislador, defender leis que assegurem os direitos das vítimas, e endureça as penas dos acusados, ao passo que, se investido em cargo do executivo, deve priorizar políticas públicas de maior encarceramento e combate à criminalidade.
O populismo penal é genuinamente utilizado pelos agentes políticos eleitos diretamente pelo povo. Contudo, por vezes, esse populismo clássico se espraia para o sistema de justiça (populismo jurídico), aqui englobando todos os setores e instituições de atuação da estrutura processual penal [3].
Diferentemente do legislativo e executivo, poderes genuinamente políticos, o judiciário tem um comprometimento técnico na aplicação das leis. Nas democracias contemporâneas, os magistrados são recrutados por intermédio de concursos públicos ou outros métodos diversos do voto popular justamente para que ajam na conformidade das normas constitucionais, sem precisar curva-se aos discursos político-ideológicos ou aos apelos da opinião pública.
Por vezes, contudo, os magistrados, relegam ao ostracismo critérios técnico-jurídicos para fazer prevalecer o populismo penal, prática essa denominada por Conrado Hübner de “populisprudência” (versão judicial do populismo) [4].
Reportando ao julgamento pelo STF sobre a prisão automática no júri, (Tema 1.068 julgado nos autos RE 1.235.340), apenas três ministros (Gilmar Mendes, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski) votaram pela inconstitucionalidade do artigo 492, inciso I, “e” do CPP. Em contrapartida, houve um voto (Edson Fachin) pela constitucionalidade do dispositivo legal, e o mais grave: de forma heterodoxa, cinco votos (ministros Luís Barroso, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Carmen Lúcia e André Mendonça) em favor da prisão automática em decorrência de condenação pelo Tribunal do Júri independentemente da pena fixada. O ministro Gilmar Mendes fez pedido de destaque, e a matéria vai ser reanalisada pelo Plenário físico.
Diante desse atual cenário, existe uma probabilidade de que o STF ateste como constitucional a prisão automática no procedimento do júri. Em se confirmando esse prognóstico, temos uma adesão do Judiciário ao populismo penal, e não uma decisão técnica-jurídica. Explicamos.
A criação, pela via infraconstitucional, de um marco de antecipação dos efeitos da sentença condenatória viola o princípio da presunção de inocência, vez que o preceito constitucional é expresso em estabelecer que o direito fundamental vigora até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Somente neste momento se opera a “certeza” exigida constitucionalmente para que seja afastado o estado de inocência do réu. Ainda que um tribunal formado por juízes togados não possa revisitar o mérito da decisão condenatória dos jurados, subsiste a possibilidade de anulação/cassação dessa sentença.
A soberania dos veredictos, principal (pseudo)argumento jurídico utilizado pelos defensores da prisão automática no procedimento do júri, não implica intangibilidade das decisões dos jurados. Há possibilidade de se recorrer das sentenças do Júri nas seguintes situações, legalmente preestabelecidas: 1) nulidade posterior à pronúncia; 2) quando for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; 3) se houver erro ou injustiça no tocante a aplicação da pena ou de medida de segurança; ou 4) quando for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
O provimento dos recursos contra a decisão do Júri pode implicar, por exemplo, anulação/cassação do julgamento, com a consequente determinação de uma nova sessão plenária. Nada impede que o réu condenado no julgamento anulado/cassado venha a ser absolvido pelo outro corpo de jurados. Por conseguinte, não há justificativa para que o sentenciado seja tratado como culpado no transcorrer do recurso. Mesmo que, na prática, vivenciamos reduzida cassação das decisões condenatórias pela segunda instância ou tribunais superiores , ela existe e há de ser considerada, pois a liberdade do cidadão é um direito fundamental consagrado constitucionalmente.
Se o STF formar maioria para decidir que a Carta Magna (artigo 5º, inciso LVII) deve se adequar à lei populista (CPP, artigo 492, inciso I, “e”), podemos afirmar que, de forma paradoxal, o Judiciário vai de encontro à sua vocação contramajoritária, restando maculado o sistema de freios e contrapesos, considerado pelos doutrinadores [5], um dos eixos fundamentais da organização constitucional.
[1] GALINDO, Bruno. Populismo jurídico e instabilidade institucional: as constituições democráticas podem contê-los? In BRANCO, Pedro H. Villas boas Castelo; GOUVÊA, Carina Barbosa; LAMENHA, Bruno (org.). Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Belo Horizonte, MG: Casa do Direito, 2020, p.291.
[2] Ibidem, p.291.
[3] SALGADO, Eneida Desiree. Populismo judicial, moralismo e desprezo à Constituição: a democracia entre velhos e novos inimigos. In. Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 117. Belo Horizonte: UFMG, 2018, p.203
[4] Disponível em: https://epoca.globo.com/politica/ConradoHubner/noticia/2018/04/populisprudencia.html, acesso em 25/11/2023.
[5] Por todos, vide: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 52
é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.
é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.
é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.
Link para acesso: https://www.conjur.com.br/2023-dez-02/prisao-automatica-no-juri-questao-tecnica-juridica-ou-populismo-penal/