A decisão por maioria de votos
É imperativa a necessidade de criação de instrumentos para otimizar e aumentar a qualidade na tomada de decisões pelos jurados. Já abordamos esse assunto, por exemplo, nos artigos "Deliberação entre os jurados aumenta a qualidade das decisões" e "As instruções e o aperfeiçoamento dos julgamentos" [1], bem como na nossa obra "Manual do Tribunal do Júri" (Editora Thomson Reuters — Revista dos Tribunais).
Isso porque a legitimidade da instituição do Tribunal do Júri não reside apenas na própria participação popular na administração da Justiça, mas principalmente na decisão dos juízes leigos tomadas a partir de um processo penal justo e democrático.
Nesse prisma, um aspecto que merece ser repensado é a atual composição numérica de jurados no Conselho de Sentença, que se caracteriza como um obstáculo à concretização de princípios fundamentais caros ao Estado de Direito.
Como se sabe, no Brasil, o Conselho de Sentença é constituído por sete jurados. No Estados Unidos (modelo adversarial inspirador do júri brasileiro e onde mais se desenvolvem pesquisas sobre o assunto), são 12 os jurados que decidem em casos criminais, de forma consensual após deliberação.
Por mais que aqui as discussões para um novo Código de Processo Penal (CPP) estejam avançando, em um caminho que se permita a deliberação entre os jurados, a discussão sobre a unanimidade ainda é bastante controversa. Considerando o nosso modelo — votação individual e sigilosa —, talvez a exigência de unanimidade seja incompatível com a heterogeneidade do grupo de jurados e da diversidade de visões possíveis sobre as provas apresentadas [2].
Entretanto, o sistema atual de possibilitar uma decisão baseada em uma diferença mínima de votos não permite aferir a existência de elementos para uma tomada de decisão segura. Matematicamente, quatro votos para condenar o acusado representam apenas 57,14% do corpo de jurados.
E o que isso pode significar dentro do contexto do julgamento pelo Tribunal do Júri? A violação direta do princípio do in dubio pro reo (!). Explica-se: o magistrado togado, em processos de sua competência, ao proferir sentença definitiva, caso tenha alguma dúvida razoável sobre a responsabilidade do acusado, absolve-o (CPP, artigo 386, VII). Isso porque, derivado do princípio constitucional da presunção de inocência, a partir do momento em que a acusação oferece a denúncia, cabe exclusivamente a ela comprovar, por intermédio de elementos probatórios, que o fato ocorreu da maneira descrita e que o acusado deve ser condenado.
Por outro lado, nos crimes de competência do Tribunal do Júri, desconhecem-se os parâmetros necessários para a condenação do acusado, pois pelo aspecto do procedimento bifásico: 1) o princípio pro reo é afastado na decisão de pronúncia (jurisprudência dominante tanto nas cortes superiores quanto estaduais); 2) no julgamento em plenário a aceitação do princípio fica a cargo dos jurados, os quais decidem por íntima convicção e sem qualquer instrução jurídica oficial sobre os standards necessários para a condenação [3].
Dessa forma, cabe às partes explicar os princípios legais para o Conselho de Sentença (o que, como sabemos, nem sempre fazem de boa-fé). Basta ler a Constituição para reconhecer que as garantias fundamentais precisam ser aplicadas em todas as fases (eis que não há previsão de eventuais exclusões). Quiçá as garantias teriam de ser aplicadas "com prioridade" no procedimento do júri, face às suas características e ao desequilíbrio da balança no julgamento [4]. Deve-se lembrar que, no Estado de Direito não basta que o julgador tenha plena convicção da responsabilidade do acusado, mas também que as provas produzidas pela acusação sejam suficientemente seguras para embasar essa convicção.
Sendo assim, se para "para os jurados, a afirmação fundada na convicção íntima substitui a prova" [5], urge que o sistema consiga salvaguardar minimamente os princípios básicos.
E, apesar de não ser possível controlar a formação da convicção dos jurados, o sistema de votação poderia ser aperfeiçoado, exigindo uma maioria qualificada para a condenação, de forma a viabilizar uma decisão mais coerente com o princípio reitor da presunção de inocência. Uma alteração simples seria o aumento do número de jurados que compõem o Conselho de Sentença de sete para oito [6].
Tal alteração, sem qualquer complexidade aparente, acarretaria mínimas mudanças na estrutura física do plenário. Assim como ocorrem em outros países, como Itália, Bélgica e Áustria, o Conselho de Sentença é constituído por um número par de jurados e [7], em caso de empate, a decisão é favorável ao acusado. Na Alemanha, precisa-se de maioria qualificada. Indo além, nos Estados Unidos da América basta um voto dissidente para que o acusado não seja condenado.
Em um processo penal verdadeiramente democrático, a proteção do acusado é alçada a valor que irradia em todas as fases e atos do procedimento, a ponto de ser preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente. Destarte, distribui-se de maneira desigual os riscos de erro, exigindo-se "um maior rigor para a condenação do que para a absolvição" [8]. E claro que isso tem como consequência a exigência de um maior standard probatório para a hipótese acusatória, como forma de conferir maior segurança nas decisões para o seu reconhecimento pelos jurados [9].
O aumento do número de jurados também refletiria o aumento populacional das últimas décadas, eis que a representatividade social se caracteriza como uma fundamental ferramenta de legitimidade do instituto [10].
De qualquer forma, para amenizar a insegurança causada com a condenação lastreada por diferença mínima de votos, faz-se fundamental aumentar o número dos componentes do Conselho de Sentença para um número par, de maneira a demandar que a decisão desfavorável ocorra por maioria qualificada.
O aumento do número dos jurados e a maioria qualificada para condenar o acusado permitiria afirmar com maior segurança que a acusação cumpriu o seu dever probatório constitucional, bem como que eventuais hipóteses alternativas sustentadas pela defesa "não ostentaram força suficiente (análise de plausibilidade) a infirmar as provas trazidas pela acusação ou foram por elas afastadas, mantendo-se resistente contra qualquer dúvida razoável" [11].
Por derradeiro, cremos ser necessário tomar cuidado com a importação de partes de modelos de sistemas de júri. Por mais que reputemos como ideal o modelo com 12 jurados e decisão unânime entre todos eles [12] — o que certamente maximizaria a segurança na decisão —, no Brasil os jurados votam de maneira individual e sigilosa por força constitucional, o que inviabiliza, em tese, a exigência de votação unânime para condenação.
[1] Artigo produzido com a colaboração da Prof. Marcella Mascarenhas, a qual também abordou o assunto na coluna Limite Penal em 11.06.2021: "Por um controle prévio de racionalidade na reforma do júri".
[2] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 136.
[3] No júri norteamericano, o princípio do beyond a reasonable doubt, não somente é amplamente conhecido e aceito pela sociedade americana como também é reforçado no julgamento. Antes de iniciada a deliberação entre os jurados, o magistrado instrui os membros do Conselho com diretrizes sobre a decisão, sendo eles lembrados de que somente poderão condenar se a acusação tiver provado a responsabilidade do acusado além da dúvida razoável.
[4] SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: Incompatibilidade com o Sistema Acusatório. In Desafiando a Inquisição: Ideias e Propostas para a Reforma Processual Penal no Brasil. CEJA: Santiago, 2017. pp. 237-250. Obra disponível em: https://bit.ly/3evcInw.
[5] PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 596.
[6] Por mais que o ideal seja o aumento para 10 ou 12 jurados. No caso Ballew v. Georgia a Suprema Corte Norte Americana, após ampla discussão e se valendo de estudos científicos, determinou que "os júris formados por um maior número de jurados são mais representativos das minorias, recordam melhor as provas, promovem uma melhor discussão e trazem maiores informações do que as deliberações realizadas por apenas seis pessoas".
[7] Ou jurados e juízes togados, quando da utilização do modelo "escabinado".
[8] NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A prova no tribunal do júri. Uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019, p. 326.
[9] Neste sentido indicamos também o artigo de Aury Lopes Jr. e Marco Aurélio Oliveira, na coluna Limite Penal de 28.08.2020: "Por que precisamos de 8 jurados no plenário do tribunal do júri?". Aliás, na obra James Tubenchlak (Tribunal do júri: contradições e soluções, 5ª. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 111), o autor aponta como melhor solução o número par de jurados; por sua vez Jader Marques (Tribunal do júri: Considerações críticas à lei 11.689/08 de acordo com as Leis 11.690/08 e 11.719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 120), sugere aumentar ainda mais o número de jurados, na busca de uma maior segurança para uma decisão condenatória; na sua obra Direito processual penal, Aury Lopes Jr. ainda arrebata indicando o aumento para "9 jurados, com a exigência de votação mínima, para condenar, de 6 votos (logo, para absolver, vale 5×4); ou ainda, para 11 jurados, com no mínimo 7 jurados votando ‘sim’ para haver condenação, de modo que, para absolver, pode ser 6 a 5". (LOPES JR., Aury. Direito processual penal, 15ª. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 855).
[10] Sobre este aspecto, sugerimos nosso artigo publicado em 6.05.2021, intitulado "Tribunal do Júri: representatividade social e o sistema norte-americano".
[11] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 131.
[12] Lembre-se que recentemente (20.04.2020) a Suprema Corte Norte Americana (case Ramos v Louisiana) decidiu que um único voto contra a condenação é o suficiente para evitar o resultado contra o acusado. Até aquela data, apenas os Estados de Louisiana e de Oregon permitiam a condenação de acusados em casos criminais a partir de 10 votos desfavoráveis à defesa. Sobre o assunto, recomendamos o texto de Diogo Malan (MALAN, Diogo. Direito fundamental ao tribunal do júri e veredito condenatório unânime. In Desafiando 80 anos de processo penal autoritário. Orgs. Antonio Santoro, Diogo Malan, Flávio Mirza. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021. p. 253-270).
é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri)
Daniel Ribeiro Surdi de Avelar
é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).
Link para acesso:https://www.conjur.com.br/2021-jul-24/tribunal-juri-decisao-maioria-votos-tribunal-juri/